BRASILIA DF: Carta sobre 'morte coletiva' de índios gera comoção e incerteza
A
carta dos indígenas Guarani-Kaiowá, anunciando o que foi
interpretado por muitos como uma ameaça de suicídio em massa, vem
gerando comoção, mas também incerteza sobre o real significado do
documento assinado por líderes da tribo.
A
carta, que teve ampla repercussão nas redes sociais e em portais de
notícia do Brasil e do exterior, foi interpretada como um anúncio
de suicídio coletivo por parte dos Pyelito Kue, comunidade de 170
indígenas que expôs seu desespero após receber uma ordem de
despejo da terra onde vive acampada. Na carta, os indígenas
afirmavam que dali não sairiam vivos.
O
documento fala em "morte coletiva" e afirma que, se
insistir no despejo, o Estado estará decretando a morte dos
indígenas, exprimindo profunda desesperança no governo e na Justiça
Federal.
Diante
da repercussão do suposto anúncio de suicídio, a Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) interveio com uma nota de
esclarecimento na terça-feira:
"Os
Kaiowá e Guarani falam em morte coletiva (o que é diferente de
suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a
Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em
tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem
todos nela, sem jamais abandoná-las. Vivos não sairão do chão dos
antepassados."
Porém,
nem o Cimi nem outras lideranças indígenas se arriscam a negar a
possibilidade de que ocorram suicídios. Membro do Conselho da Aty
Guasu, grande assembleia do povo Kaiowá e Guarani, o vereador
Otoniel Ricardo disse à BBC Brasil não poder afirmar "que isso
não pode acontecer".
"São
eles que decidem. Se mexer (na terra onde estão acampados), pode
acontecer. Se não mexer, eles vão continuar vivendo lá porque o
território é deles", diz Ricardo. "O que eles decidiram é
que não vão mais sair dali, nem vivos nem mortos. Querem ser
enterrados lá mesmo."
Na
sexta-feira passada, a afirmação categórica por parte da Fundação
Nacional do Índio (Funai) de que "não há intenção de
suicídio", em um comunicado, irritou a Aty Guasu. Em sua página
no Facebook, lideranças da assembleia disseram que o órgão havia
sido "autoritário" e parecia estar "ignorando o fato
conhecido de suicídio epidêmico do povo Guarani e Kaiowá do Mato
Grosso do Sul".
Por
sua localização remota, é difícil estabelecer contato telefônico
com o Pyelito Kue. Uma equipe do Cimi foi enviada para o povoado para
falar da repercussão da carta e saber suas reações.
Despejo
A
carta que chamou tanta atenção expõe o desespero do pequeno
povoado de Pyelito Kue, após receber uma ordem de despejo da Justiça
Federal no fim de setembro. Há um ano, o grupo de 170 indígenas
vive acampado em terras de uma fazenda à beira do rio Hovy, no
município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul.
"Pedimos
ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de
despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte
coletiva e para enterrar nós todos aqui", dizem no documento.
"Pedimos,
de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção
total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco
para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos
juízes federais."
De
acordo com a Funai, a área ocupada pela comunidade está em estudo.
"Os estudos precisam ainda ser aprovados e enviados ao Ministro
da Justiça para que a terra indígena seja declarada de ocupação
tradicional do grupo indígena e seja demarcada."
Expulsos
de sua terra originária e aguardando há décadas a demarcação das
áreas a que têm direito garantido pela Constituição Federal de
1988, os Guarani-Kaiowá são 45 mil brasileiros. Vivem em sua
maioria espalhados pelo Mato Grosso do Sul, disputando a terra com o
rico agronegócio do estado.
Coordenador
regional do Cimi para o Mato Grosso do Sul, Flávio Machado afirma
que a carta expõe as dificuldades não apenas do Pyelito Kue, mas de
toda a população Guarani-Kaiowá, que são a segunda maior
população indígena no Brasil.
"A
carta retrata uma situação dramática daquilo que praticamente todo
o povo Guarani-Kaiowá está vivendo", diz Flávio Vicente
Machado, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) para o Mato Grosso do Sul.
Violência
Nos
últimos dez anos, afirma, quase não houve avanços na demarcação
de territórios indígenas no país. Enquanto isso, a violência
contra indígenas no estado se acirra, com assassinatos de líderes e
ataques frequentes de pistoleiros.
Nas
últimas semanas, segundo o Cimi, diversas comunidades Guarani-Kaiowá
sofreram ataques e agressões no estado, como Potrero Guasu, Arroio
Korá e Laranjeira Nhanderu.
Em
repúdio aos ataques, movimentos sociais organizaram um ato em defesa
aos Guarani-Kaiowá em Brasília na sexta-feira. Cinco mil cruzes
foram fincadas na Esplanada dos Ministérios para chamar atenção
para o que manifestantes classificaram de "genocídio".
Na
manhã desta quarta-feira, mil pessoas já haviam assinado a
petição intitulada "Vamos impedir o suicídio coletivo dos
índios Guarani-Kaiowá" no site Avaaz, que mobiliza
abaixo-assinados pela internet.
A
interpretação de suicídio em massa vem ancorada em uma dura
realidade: a de que os Guarani-Kaiowá detém um dos mais altos
índices de suicídio no país e, de acordo com o Cimi, no mundo.
A
cada seis dias, um jovem guarani-kaiowá tira a própria vida. Dados
do Ministério da Saúde divulgados neste ano mostraram que, de 2000
para cá, 555 indígenas dessa etnia cometeram suicídio, sendo a
maior parte dos casos por enforcamento (98%) e cometidos por homens
(70%), a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos.
Falta de perspectiva
Os
índice é bastante superior à média nacional. Em 2007, foi de 65
indígenas por cada 100 mil habitantes, contra 4,7 pessoas a cada 100
mil em todo o Brasil.
Estudiosos
associam o alto número de suicídios entre as tribos à
insuficiência de terras, à falta de perspectiva de ter territórios
demarcados e ao confinamento em reservas indígenas.
Os
índices de homicídio também são alarmantes. Relatórios de
violência do Cimi mostram que, nos últimos anos, o Mato Grosso do
Sul vem liderando "o triste ranking de estado mais assassino de
indígenas":
"Os
Guarani-Kaiowá são um povo que está sendo culturalmente e
politicamente assassinado. Ora pela falta de vontade política do
governo, ora por pistoleiros, a mando de fazendeiros", considera
Flávio Machado.
Na
carta dos Pyelito Kue, eles afirmam que quatro pessoas da comunidade
já foram mortas, duas por suicídio e duas "em decorrência de
espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas".
"Já
perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em
nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça
Brasileira", afirma o documento.
FONTE: BBC
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